O Brasil possui cerca de 14 mil pessoas com hemofilia, uma doença rara causada pela deficiência de fatores de coagulação no sangue, o que leva a sangramentos frequentes e, muitas vezes, graves. Apesar de o tratamento mais tradicional estar disponível pelo Sistema Único de Saúde (SUS), muitos pacientes e cuidadores relatam dificuldades em administrá-lo no ambiente doméstico. É o que revela o “Mapeamento Jornada do Paciente com Hemofilia A e B no Brasil”, conduzido pela Associação Brasileira do Paciente com Hemofilia (Abraphem) e divulgado nesta quinta-feira (31).
De acordo com a presidente da Abraphem, Mariana Battazza, a maioria dos pacientes com hemofilia necessita de infusões regulares de fator VIII ou IX para prevenir os sangramentos, principalmente os internos, que podem causar dor intensa, degeneração articular, danos neurológicos e até a morte. Esse tratamento, no entanto, é feito por via intravenosa, em média, três vezes por semana, o que representa um grande desafio, sobretudo para famílias com crianças pequenas.
A pesquisa mostrou que 59% dos cuidadores de crianças entre 0 e 6 anos não conseguem aplicar o medicamento em casa. Com isso, 27% recorrem a unidades de saúde, 14% se deslocam até centros especializados e 18% recebem auxílio de profissionais em domicílio. Ainda assim, todos precisam retirar o medicamento presencialmente nos hemocentros — um processo que pode levar mais de cinco horas, considerando o tempo de deslocamento e atendimento. Para 57% dos entrevistados, a unidade de tratamento fica a mais de 100 km de distância.
“Isso compromete a autonomia da família e exige tempo e preparo, especialmente quando não há hemocentro no município. A doença é rara e nem sempre os profissionais de saúde locais estão preparados para atendê-la”, destacou Battazza.
Outro ponto sensível identificado pela pesquisa é a dificuldade na aplicação intravenosa em crianças. Segundo o estudo, são necessárias duas ou mais tentativas de punção para realizar a infusão com sucesso, o que agrava o estresse dos cuidadores — a maioria composta por mulheres, geralmente mães. A diretora estratégica da Supera Consultoria, Verônica Stasiak, responsável técnica pelo estudo, ressalta o impacto emocional dessa realidade.
“A primeira infância é um período crítico do desenvolvimento motor e cognitivo da criança. A hemofilia impõe uma vulnerabilidade grande, e o risco de sequelas pode comprometer o futuro desses pequenos”, afirmou.
Apesar da ampla adesão à profilaxia, quase 59% dos entrevistados relataram ter sofrido pelo menos três sangramentos no ano anterior, sendo a maioria casos de hemartrose — sangramento interno nas articulações. Entre os pacientes adultos, 71% já apresentam limitações de mobilidade, e, em 90% desses casos, essas limitações são permanentes.
O estudo também apontou o impacto socioeconômico nas famílias: 84% dos pacientes são cuidados pelas mães, das quais 35% precisaram deixar o trabalho, 23% reduziram a carga horária e 14% mudaram de função para se adaptar à rotina de cuidados.
Diante desse cenário, a Abraphem defende a ampliação do uso do emicizumabe — anticorpo monoclonal aplicado por injeção subcutânea — para crianças menores de 6 anos. Atualmente, o medicamento está disponível no SUS apenas para pacientes que desenvolveram resistência ao tratamento tradicional. Em 2023, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) analisou a possibilidade de expandir o uso do medicamento para menores de 12 anos, mas emitiu parecer desfavorável, alegando incertezas quanto à eficácia da tecnologia nesse público.
Para a Abraphem, além da eficácia médica, os benefícios indiretos da aplicação subcutânea devem ser considerados. “Um medicamento mais eficaz reduz internações, complicações e faltas na escola ou no trabalho. Isso melhora a qualidade de vida e reduz os custos ao sistema de saúde no longo prazo”, argumenta Battazza.
A pesquisa, financiada pela farmacêutica Roche — fabricante do emicizumabe —, não abordou comparações de custo-benefício entre os tratamentos, mas revelou que 92% dos entrevistados gostariam de ter acesso a opções menos invasivas.
“A dificuldade no acesso venoso, a resistência das crianças ao tratamento e os desafios logísticos evidenciam que a via de administração do medicamento deve ser levada em conta como critério de acesso à saúde”, defende Verônica Stasiak.
Em nota, o Ministério da Saúde informou que os medicamentos para hemofilia são adquiridos e distribuídos gratuitamente pelo SUS aos centros de tratamento em todo o país, por meio das hemorredes estaduais. A pasta afirma que garante acesso à terapia adequada a todos os pacientes com hemofilia no território nacional.