A Lei Maria da Penha, marco histórico no combate à violência contra a mulher no Brasil, completa 19 anos nesta quinta-feira (7). Apesar de ser reconhecida internacionalmente — inclusive pela ONU — como uma das legislações mais avançadas do mundo, a realidade brasileira segue marcada por um cenário alarmante de violência doméstica e feminicídios.
Dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no mês passado, revelam um contraste doloroso: quatro feminicídios e mais de 10 tentativas de assassinato contra mulheres são registrados por dia no país. Em 80% dos casos, os agressores são companheiros ou ex-parceiros das vítimas.
Medidas ineficazes
Um dos principais instrumentos da Lei Maria da Penha são as medidas protetivas de urgência, criadas para impedir a aproximação dos agressores. No entanto, das 555 mil medidas concedidas em 2023 — o equivalente a 88% dos pedidos — pelo menos 101.656 foram descumpridas. E o dado mais chocante: ao menos 121 mulheres foram assassinadas nos últimos dois anos mesmo estando sob proteção judicial.
Para a pesquisadora Isabella Matosinhos, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é necessário um olhar mais atento para os casos em que as medidas não surtiram efeito. “Esse é o desafio: olhar para os casos em que a medida protetiva é ineficaz”, afirma.
Desde 2019, uma alteração na lei permite que delegados concedam medidas protetivas sem necessidade de aguardar o Judiciário, tornando o processo mais ágil. Apesar disso, a falta de uma rede eficaz de apoio e fiscalização compromete a segurança das vítimas.
Atendimento em rede
A Lei Maria da Penha prevê um sistema de atendimento em rede, envolvendo saúde, assistência social e segurança pública. Mas, segundo Matosinhos, a integração desses serviços ainda é uma barreira. “É muito difícil que exista o funcionamento integrado dessas redes”, avalia.
A pesquisadora Amanda Lagreca, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), reforça que a aplicação efetiva da lei exige políticas públicas que considerem a complexidade da vida das mulheres brasileiras. “O poder público precisa pensar como a assistência social, a polícia e o sistema de justiça criminal estão implementando a legislação”, destaca.
Nas capitais, esse atendimento tende a ser mais estruturado. Já nos interiores, os desafios se agravam por falta de investimentos e recursos locais.
Perfil das vítimas
A violência atinge mulheres de todas as classes sociais e regiões do país, mas os dados do anuário mostram que as principais vítimas são mulheres negras (63,6%) e jovens entre 18 e 44 anos (70,5%). “A maioria delas são mortas dentro de casa por homens. Mulheres jovens e negras acabam sendo as principais atingidas”, destaca Isabella.
Educação e mudança cultural
Apesar das falhas na aplicação, a Lei Maria da Penha é vista como um marco na luta por direitos e na prevenção da violência de gênero. Ela prevê, por exemplo, a inclusão do agressor em grupos reflexivos, com foco educativo e preventivo.
Amanda Lagreca, da UFMG, destaca que a lei foi fruto da pressão da sociedade civil e reconhece que o enfrentamento à violência deve começar pela educação. “É preciso ocupar espaços de influência, como escolas, para ensinar que a sociedade não tolera violência contra a mulher.”
Um dos avanços mais recentes foi a inclusão da violência psicológica entre as formas de agressão previstas na lei, ampliando o escopo de proteção às mulheres.
Serviço e prevenção
A solicitação de medidas protetivas exige, em geral, a existência de um histórico de violência. Para especialistas, prevenir os primeiros sinais de agressão requer uma mudança cultural profunda e investimentos em políticas públicas efetivas.
“A utilização da Lei Maria da Penha continuará sendo um instrumento de combate. Mas esse agravamento da violência de gênero é o grande gargalo da democracia brasileira. Mulheres morrem por serem mulheres”, conclui Amanda Lagreca.