Ao menos oito meses antes da operação conjunta da Polícia Federal (PF) e da Controladoria-Geral da União (CGU), que mirou um suposto esquema de descontos não autorizados em benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), uma auditoria interna da autarquia já havia identificado sérias inconsistências e falhas em parte dos acordos firmados com organizações da sociedade civil.
O foco da investigação e da auditoria é o Acordo de Cooperação Técnica (ACT), mecanismo legal utilizado pelo INSS para permitir o desconto de mensalidades associativas diretamente da aposentadoria ou pensão, com repasse integral a associações e entidades representativas de beneficiários.
Segundo relatório da Auditoria-Geral da autarquia, “os procedimentos de formalização e operacionalização dos ACTs firmados pelo INSS não atenderam integralmente os requisitos estabelecidos”, apontando fragilidades tanto na adesão quanto no controle desses descontos. A análise foi realizada a pedido do então presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, em maio de 2024 — quase um ano antes da deflagração da Operação Sem Desconto, que resultou na suspensão de todos os ACTs e no afastamento de Stefanutto e outros quatro dirigentes.
A Diretoria de Benefícios e Relacionamentos com o Cidadão, foco da auditoria e também um dos alvos da operação da PF, era chefiada por Vanderlei Barbosa dos Santos desde julho de 2023. Ambos foram afastados após o avanço das investigações, e Stefanutto acabou exonerado do cargo.
Veja também
Milhões de reais e beneficiários prejudicados
O INSS ainda não tem números exatos sobre quantos beneficiários foram prejudicados ou o total descontado indevidamente. No entanto, entre janeiro de 2023 e maio de 2024, o órgão recebeu 1.163.455 pedidos de cancelamento de cobranças associativas. A imensa maioria — cerca de 90,7% — foi motivada pela alegação de que os descontos não haviam sido autorizados pelos aposentados ou seus representantes legais.
“Do total de 1.163.455 tarefas de exclusão de descontos, 1.056.290 apresentaram indicação de não autorização dos descontos associativos”, aponta o relatório.
Em uma amostra de 603 pedidos, selecionada aleatoriamente pela Auditoria-Geral, 329 não contavam com nenhum documento comprobatório de autorização dos segurados. Nos demais 274 casos, mesmo com a documentação, o relatório alerta que a regularidade formal não necessariamente confirma a real intenção do beneficiário.
Sistema de descontos movimentou bilhões
A prática de descontos associativos em benefícios previdenciários está prevista na Lei dos Benefícios da Previdência Social desde 1991. Ao longo dos anos, os valores movimentados pelo sistema aumentaram exponencialmente.
Em 2016, foram R$ 413 milhões; em 2022, o total chegou a R$ 706 milhões. Já em 2023, os descontos bateram a marca de R$ 1,2 bilhão. No ano passado, os valores dispararam: R$ 2,8 bilhões foram repassados a entidades por meio dos ACTs.
Com base nos mais de 1,1 milhão de pedidos de exclusão, os auditores calcularam que o valor médio dos descontos foi de R$ 39,74 por beneficiário — embora em alguns casos os valores possam ser significativamente maiores, dependendo das condições dos acordos.
Impactos nos serviços do INSS
Além do prejuízo direto aos segurados, o relatório aponta que a avalanche de pedidos de cancelamento também teve reflexos na fila de atendimentos do INSS, sobrecarregando os servidores e atrasando a análise de outros processos.
“As irregularidades apontadas pelos beneficiários indicam que a conveniência e o interesse público na manutenção das parcerias não foram assegurados sob a perspectiva de custos e de impacto no atendimento ao cidadão”, conclui o documento.
Divulgado na segunda-feira (28), o relatório apresenta nove recomendações, entre elas a reavaliação completa do processo de implantação dos ACTs, a verificação detalhada das autorizações e a suspensão da implantação de novos descontos até que o sistema passe por revisão — medidas que, segundo os auditores, não foram adotadas a tempo.